Foto: João Lopes Cardoso/JMJ LIsboa 2023

A dinâmica sinodal e a tribalização que contamina o diálogo

Diante das incertezas de uma metamorfose cultural e social em movimento imparável, é o perene que vai sucumbindo, provocando a efémera reação das estruturas de crença, entre a tentação para o fechamento e a criatividade na atualização. No contexto da Igreja católica, será necessário clarificar o propósito do Segundo Concílio do Vaticano.

Na expressão do calvinista Karl Barth, a Igreja está sempre em reforma. Os teólogos católicos Hans von Balthasar e Karl Lehman, insistiram, também no século do aggiornamento, num discernimento com capacidade de mudança.

Em 2023, diante de jovens que o questionaram sobre difíceis temas para a Igreja católica, o papa Francisco defendeu que “a reforma da Igreja” deve começar por dentro:

“Igreja deve ser sempre reformada, sempre, porque à medida que as culturas progridem, as exigências mudam"1

A dinâmica sinodal lançada pelo papa Francisco opera intuições que vêm desse grande momento na história da Igreja, no século XX, com as ferramentas de uma ação pastoral pragmática, mergulhada no hoje, na vida das pessoas e das comunidades. «Quadratura do círculo», dirão alguns, insinuando que a Igreja católica está num «beco sem saída» ou na antecâmara de um novo cisma.

Assim como “a realidade é superior à ideia” (Evangelli Gaudium, 231), não há perenidade sem o equilíbrio tenso entre a ideia e a realidade, sem uma ação concreta, na circunstância, com processos de sintonia que, simultaneamente, asseguram os critérios éticos do evangelho e respondem aos novos padrões de comportamento, aos desafios da tecnologia e da ciência:

“(...) a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se. Entre as duas, deve estabelecer-se um diálogo constante, evitando que a ideia acabe por separar-se da realidade. (...) Isto supõe evitar várias formas de ocultar a realidade: os purismos angélicos, os totalitarismos do relativo, os nominalismos declaracionistas, os projectos mais formais que reais, os fundamentalismos anti-históricos, os eticismos sem bondade, os intelectualismos sem sabedoria.” (EG, 231)

A Igreja católica, à semelhança de outros enquadramentos religiosos, entrou numa espécie de período decisivo 2 e fractal – mais um na sua história – a exigir a lucidez de um regresso à origem evangélica, que não pode nem deve confundir-se com um retorno ao passado. O passado, em contexto religioso/doutrinário, é um arquivo de recurso para recompor cada presente.

“A doutrina também progride, dilata-se com o tempo, consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo”, afirmou Francisco 3 num encontro com jesuítas portugueses. “A mudança desenvolve-se da raiz para cima”, mas há forças “retrocedistas” na Igreja, diz o Papa.

A primeira sessão do Sínodo sobre a sinodalidade, em outubro passado, mostrou, num modelo de trabalho prático, como diferentes pontos de vista podem abordar os mesmos temas, valorizando – sob o princípio de uma supervisão do Espírito – a escuta, a partilha e compreensão de posições. Afinal, o que se pede em qualquer diálogo.

Será o epíteto clássico de «conservadores» aplicável? E será a denominação «progressistas» a que melhor define, digamos, o outro lado do debate?

Haverá outra definição para adjetivar as divergências. Os «realistas» e os «imobilistas», por exemplo. Usando a expressão de um padre com décadas de serviço no Alentejo, os que “metem as mãos no barro, sem medo de as sujar, e os que preferem o cheiro a cera dos altares”. Noutro ângulo, teremos os “missionários apaixonados” e os “burocratas diligentes” 4.

Em entrevista transmitida pela TVI e CNN Portugal 5, em agosto de 2022, o Papa referia os que “vão à frente”, mais apressados, e os que vão atrás, a precisar de apoio para entenderem o caminho. Impor uma velocidade é uma forma de “clericalismo”. Francisco defende que um «pastor» tem de “falar com os que estão mais adiantados para marcar o ritmo, ajudá-los para que não se percam, estar no meio para sentir o cheiro das pessoas, do povo, e estar atrás com os que estão mais renitentes à mudança e acompanhá-los”.

A legitimidade das grandes comunidades religiosas fomenta-se nesta tensão. Nas vivências mais locais ou na multiplicidade de movimentos e carismas, a Igreja é uma evidência de diversidade. Tal como o judaísmo onde nasceu, o seguimento de Jesus não tem, nunca teve, uma experiência de fé monolítica, como não se inaugurou como religião elitista, étnica ou de casta. Atendendo aos textos bíblicos, este foi, de resto, o primeiro grande debate dos seguidores de Jesus para o desenvolvimento do que podemos considerar o dealbar de uma ética cristã do acolhimento. A metanoia começa no acolhimento de uma novidade e o reino prometido é, em primeiro lugar, para os excluídos, da beira da estrada e mais fracos, os, até então, não acolhidos nos templos.

A tensão na diversidade, que, na sua expressão mais grave, levou a ruturas como o cisma do oriente e a reforma protestante, faz parte da história. O Segundo Concílio do Vaticano exercitou um espaço de debate inclusivo na Igreja católica, mas também não conseguiu evitar a fragmentação de um setor tradicionalista e ritualista.

O teólogo Harvey Cox6 fala em três períodos no catolicismo: a "Era da Fé", que começa com os primeiros seguidores e a perseguição inicial que os põe à prova; a "Era da Crença", quando o seguimento ganha corpo institucional e se normaliza, criando uma ortodoxia – “substituindo a fé em Jesus por princípios sobre ele” – que acaba por legitimar a segregação em nome da fé; a "Era do Espírito", pós-Segundo Concílio do Vaticano, que abre espaços a desinstitucionalizadas experiências de fé, a dinâmicas interculturais, e abala “os alicerces da hierarquia”7.

Nesta última fase, testemunha-se o desgaste de credibilização da instituição, a polarização entre movimentos de horizontalidade e a defesa irredutível do status. Pelo meio, um fenómeno vai inquinando internamente as possibilidades de diálogo: uma tribalização agressiva. Há, também na Igreja católica, um ambiente comunicacional exacerbadamente radicalizado, à semelhança do que se passa noutros grupos religiosos e noutras áreas da atividade humana, nomeadamente a política.

São saudáveis os diferentes pontos de vista, sem os quais não se manifesta a harmonia, mas nunca como agora, por via da fácil propagação digital em redes de tratamento algorítmico, os cristãos católicos assistiram a tão vasta difusão de opiniões com palavra áspera e violenta, num terrorismo verbal oriundo também de clérigos com responsabilidades pastorais. Nestas circunstâncias, o vilipêndio atinge até o papa Francisco. Chegam a acusá-lo de ter uma agenda escondida...

Estes núcleos de crentes – onde se detetam motivações mais político-ideológicas e partidárias do que evangélicas – normalizam a ofensa, constroem redomas de solidariedade acéfala, procuram anular ou ostracizar o pensamento crítico. O debate em torno das propostas sinodais estimulou estas correntes. Embora minoritárias, são estrategicamente ruidosas, empenham-se na profusão de falsidades ou deturpações. E é neste terreno adverso que – inesperadamente, ou talvez não... – se faz também o Sínodo sobre a sinodalidade.

Compreende-se o incómodo com mudanças que obriguem a deixar «zonas de conforto», mas é precisamente por aqui que se organizam estes grupos, ampliando a manipulação, contaminando o diálogo numa Igreja em consequente aquaplaning. Reveja-se o caso recente da declaração Fiducia supplicans, sobre o propósito pastoral das bênçãos a casais do mesmo sexo ou em situação “irregular”. Mesmo no cenário de um difícil debate entre “a minha verdade” e “a verdade dos outros”8, discordar implica o modo ético, o conhecimento, a razão e o argumento discernido.

Entre duas assembleias (outubro de 2023 e outubro de 2024) o desafio sinodal aprofunda-se num documento com pistas de reflexão (convergências, questões a aprofundar e propostas) que podem resumir-se em 5 tópicos: entender a Igreja e o mundo; desenvolver a intransigência do diálogo nas comunidades; comunicar a dinâmica sinodal com abordagens concretas e pragmáticas; ousar propostas e experiências pastorais no acolhimento e na corresponsabilidade; promover o debate interno sobre a governança e a doutrina, procurando a moderação e garantindo o respeito pela diversidade.

Se virmos bem, não é um programa que se aplica apenas a uma estrutura religiosa que precisa de se entender no mundo e com mundo...

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1.Amén. Francisco responde, documentário televisivo emitido no canal Disney em abril de 2023.
2.Franco, Joaquim. (2023). ...e depois da Jornada Mundial da Juventude?, in Não Temos Medo. (p.39). Prior Velho: Paulinas.
3. https://pontosj.pt/especial/aqui-a-agua-foi-bem-agitada-papa-francisco-em-conversa-com-jesuitas-em-portugal/
4. Papa Francisco, Oração do Angelus, em 14 de agosto de 2016, Praça de São Pedro, Vaticano.
5. https://cnnportugal.iol.pt/papa-francisco/jornadas-mundiais-da-juventude/papa-francisco-a-entrevista-na-integra-a-monstruosidade-na-igreja-os-sacerdotes-doentes-ou-criminosos-a-justica-para-as-mulheres-e-um-pedido-aos-portugueses/20220905/631609630cf26256cd3436dd
6. Cox, Harvey. (2009). The future of faith. (p.5). Nova Iorque: Harper One
7.Idem
8. Papa Bento XVI, discurso no Encontro com o mundo da Cultura, em 12 de maio de 2010. Centro Cultural de Belém, Portugal.

Joaquim Franco

Investigador em Ciência das Religiões e co-autor de Não Temos Medo